Então, em setembro, num dos meus desafios literários, eu preciso ler um livro histórico e um romance da mesma época. Como quase tudo que tenho de história é sobre o mundo árabe, resolvi ler um estudo sobre a vida e a obra da maior cantora egípcia de todos os tempo: Umm Kulthum. Para acompanhar, no momento estou lendo uma das obras do prêmio Nobel Naguib Mahfouz, também egípcio.
Nesse volume sobre a Quarta Pirâmide (só um dos epítetos de Umm Kulthum), a estudiosa de etnologia musical Virginia Danielson (que tem outros livros sobre a música árabe já publicados), faz um estudo sobre a vida e a obra da cantora, para tentar determinar o que a levou a ter o seu sucesso astronômico e como ela conseguiu manter o seu sucesso mesmo décadas depois da sua morte em 1975.
Como foi pedido especificamente para mim sobre esse livro por diversas bailarinas de dança do ventre, vou fazer uma resenha "with spoiler".
Então, o livro narra com alguma profundidade a biografia da grande Diva Egípcia, mas tenta se ater mais ao lado criativo e do seu estilo musical do que à parte pessoal da vida de Umm Kulthum. Claro que em diversos momentos as duas coisas se entrelaçam, e diversas anedotas (algumas extremamente divertidas) estão incluídas no livro. O mais interessante é que mesmo essas anedotas possuem referência bibliográfica, porque afinal de contas o livro é uma obra acadêmica.
Algum conhecimento de música é interessante para aproveitar o livro em sua totalidade, e em diversas passagens confesso que fiquei desejando conhecer mais teoria musical para compreender o que a autora queria dizer. Mas não achei que minha limitação me fizesse apreciar menos a leitura, pelo contrário, me deixou com vontade de estudar mais música para poder ler o livro novamente.
Isso porque a história de Umm Kulthum perpassa diversas décadas da história do próprio Egito e também da música árabe. Hoje é impossível falar de música árabe sem mencionar a cantora e o seu peso e grandeza. Tamanha é a sua importância que durante décadas algumas das críticas voltadas a ela eram pautadas justamente no excesso de visibilidade que ela tinha, pois parecia que não tocava mais nada além de Umm Kulthum nas rádios. E o rádio foi, durante a maior parte do século XX, o meio de comunicação mais importante do Egito e de diversos países árabes, e ela dominava a programação.
Mas não só de talento musical vivia a Quarta Pirâmide, ela era muito boa no mundo dos negócios também. Seus contratos com as gravadoras e as rádios eram os melhores possíveis para ela, com margens de participação nos lucros e com o maior cachê do Egito (e do mundo árabe), desde a virada da década de 20 para 30 até a sua morte nos anos 60. Seus contratos eram de tal forma que se alguém pedisse um cachê maior o dela deveria subir imediatamente para o mesmo patamar. E sua influência foi tal que ela foi presidente do Sindicato dos Músicos por anos (algo simplesmente impressionante para uma mulher no Egito) desde a sua instituição, e através da sua proximidade com o governo ela ainda tinha um passaporte diplomático, além de participar das formulação das diretrizes para o Ministério da Cultura.
Seus concertos duravam horas e além de serem sempre lotados, ainda por cima eram transmitidos, primeiro pelo rádio e depois pela televisão. Ela foi um dos últimos cantores no mundo árabe a trabalharem nesse estilo tradicional, onde a maioria dos músicos não tinham as músicas anotadas em partituras, mas sabiam tudo de cor e improvisavam em cima, de acordo com as repetições que a cantora fazia de cada linha da música. E Umm Kulthum sabia se comunicar com o seu público, escolhendo não só as músicas que iria cantar de acordo com o humor da sua audiência, mas também repetindo as estrofes de acordo com os pedidos feitos na hora. Dessa forma, cada concerto era absolutamente único e inimitável, e tanto a cantora e sua orquestra quanto o público participava na "criação musical" daquela noite, onde cada música podia durar entre 45 minutos a 1 hora em meia.
Mas como ela atingiu todo esse sucesso?
A conclusão que o livro nos mostra é que Umm Kulthum, por ter tido uma educação (informal) melhor do que a média com o seu pai que era sheique, e por isso sabia recitar muito bem o Corão, teve de cara um recebimento diferenciado quanto chegou desconhecida no Cairo, tanto pelas elites quanto pelas camadas mais pobres da população, de onde ela própria veio. Ela não só tinha uma voz e um talento musical invejáveis, mas ela ascendeu pela sua própria perseverança e estudo, se tornando uma mulher considerada extremamente culta. E isso sem perder o contato com as suas raízes humildes, se mostrando um exemplo de mulher egípcia recatada e religiosa, mas ao mesmo tempo, com o contato com as elites, ela também aprendeu a ser refinada e elegante. Dessa forma, ela conseguiu personalizar um sonho coletivo de ascensão social, sem perder o contato com as tradições egípcias, mas também com um refinamento e peso intelectual que agradavam as camadas abastadas.
Quando o Egito deixou de ser um protetorado britânico e uma monarquia, ela soube se posicionar de forma a manter a aura de egípcia vinda do interior, com capacidade intelectual e talento musical que continuava a agradar tanto o povo quanto a nova elite militar.
Então, Umm Kulthum recebeu descrições como: ela era boa porque sabia recitar o Corão; porque ela cantava à moda tradicional árabe; porque ela sabia inovar e mesmo assim manter a raiz da música como árabe, e mais especificamente egípcia. Mas isso tudo aliado a uma eficiência impressionante para se manter sempre atualizada e no topo financeiramente e dentro da indústria musical como um todo.
Mas claro, a Diva tinha os seus defeitos e manias. Os letristas e compositores que trabalhavam com ela sofriam com suas inúmeras exigências e solicitações de modificações, além de um pagamento que deixava a desejar quando comparado com o que ela ganhava. E desde cedo ela começou a ter problemas de saúde, que a afligiram por toda a sua vida. As fortes luzes dos estúdios de cinema (ela chegou a atuar em diversos filmes) a deixaram com os olhos fragilizados, e por isso ela estava sempre de óculos escuros. Além disso ela tinha problemas graves no fígado, bexiga e pâncreas, que em diversos momentos atrapalharam a sua carreira e por fim a levaram à morte.
Quando ela faleceu, ela já tinha se tornado um ícone tão importante que sua internação foi acompanhada pela televisão, pelos rádios e pelos jornais quase que 24 horas. E o seu enterro foi um acontecimento maior do que o enterro do grande político Nasser, seu caixão após a liturgia foi tomado pela multidão e carregado por 3 horas pelo Cairo até a sua mesquita favorita, onde finalmente o Imã local conseguiu convencer a turba a levá-la para o seu local final de descanso.
Mesmo 40 anos depois da sua morte, ela continua uma presença fortíssima na cultura e na música árabes, e ainda pode ser escutada nas rádios e nos cafés egípcios. Realmente ela merece ser chamada de A Quarta Pirâmide.
Nota 10.